
Em Portugal, há temas que se evitam : a chuva, os impostos, a política… e sobretudo, dizer que não se gosta de bacalhau ! Sim, é quase um sacrilégio, porque aqui o bacalhau não é apenas um peixe : é uma instituição, um símbolo nacional, uma verdadeira religião culinária. Aliás, todos sabemos (e faz parte dos clichés), os portugueses são conhecidos por adorar cozinhar e comer bacalhau…
E se pensa que um peixe salgado e seco não pode fazer vibrar todo um povo, é porque nunca partilhou uma mesa portuguesa numa noite de festa, onde o bacalhau reina, majestoso, no centro da refeição !
O bacalhau, esse “peixe que vem do frio” e aquece os corações
Comecemos por uma evidência : o bacalhau não é português. Sim, leu bem (e talvez fique um pouco desiludido !) O bacalhau vem das águas frias do norte da Europa, como a Noruega ou a Islândia e, por vezes, o Canadá. Mas é em Portugal que encontrou o seu reino !
A história remonta a vários séculos, quando os marinheiros portugueses, grandes exploradores de sempre, procuravam uma forma de conservar o peixe durante as longas travessias. A salga e a secagem impuseram-se como a solução milagrosa. Desde então, este peixe estrangeiro tornou-se mais português do que nunca.
Hoje, há uma expressão bem conhecida aqui : “Há mais de mil receitas de bacalhau.” E o pior é que é quase verdade ! Cada família, cada região, cada avó tem a sua maneira de o preparar, o seu segredo de cozedura, o seu pequeno toque mágico.
O ritual de demolhar (ou a arte da paciência)
Antes mesmo de falar de cozinha, é preciso falar de preparação. Porque cozinhar bacalhau é uma questão de respeito. Ele chega na sua forma emblemática : uma grande tábua de peixe seco, rígida como uma tábua de engomar e coberta de sal. É então preciso “trazê-lo de volta à vida”, lentamente. Tradicionalmente, deixa-se de molho em água durante 24 a 48 horas, mudando a água regularmente. Não é glamouroso, mas é essencial. Demasiado salgado, e é intragável. Pouco demolhado, e falta-lhe alma. Por isso, não se admire de ver bacalhau (e o cheiro que o acompanha, claro) a demolhar no lava-loiça da cozinha ou numa bacia em casa do seu português favorito !
Quando finalmente está pronto, torna-se maleável, macio, pronto a ser sublimado. E aí, os portugueses revelam o seu génio culinário : frito, assado, desfiado, em salada, em gratinado, em pastéis, em sopa… não há literalmente limites !

© david-b-townsend
As receitas míticas (e um pouco irresistíveis)
É impossível citar todas as receitas, mas algumas são simplesmente incontornáveis ! E se ainda não as provou, está na hora de reservar um restaurante português.
Bacalhau à Brás : o preferido dos lisboetas. Uma mistura de ovos mexidos, cebolas, batatas cortadas em palha (as “batatas palha”) e bacalhau desfiado. Cremoso, reconfortante e viciante. Diz-se que foi inventado por um certo “Brás”, um taberneiro do bairro do Bairro Alto, o tipo de homem a quem Portugal devia uma estátua.
Bacalhau com natas : a versão mais suave, a dos domingos em família. Bacalhau, batatas, cebolas, tudo coberto com um molho de natas e gratinado no forno. Untuoso, generoso, totalmente decadente. (Sim, é uma bomba calórica, mas sinceramente, quem é que conta quando é tão bom ? No pior dos casos, sobe as escadas depois)
Bacalhau à Gomes de Sá : um clássico do norte, nascido no Porto ! Pedaços de bacalhau assados no forno com batatas, cebola, azeite, azeitonas pretas e ovos cozidos. Simples, aromático, tipicamente português.
Pataniscas de bacalhau : pastéis crocantes e dourados, perfeitos como aperitivo. Acompanhados de arroz de feijão, é um prato de tasca como nós gostamos.
E claro, impossível esquecer o Bacalhau da Consoada, O prato da véspera de Natal. Nessa noite, em quase todas as casas portuguesas, a mesa é posta em torno do bacalhau cozido, servido com batatas, couve e um fio de azeite. Sóbrio, mas cheio de significado. Uma tradição imutável !
O rei de todas as mesas
O que fascina é até que ponto o bacalhau atravessa todas as camadas da sociedade. Da tasca popular aos restaurantes gastronómicos, das mesas familiares aos casamentos elegantes, ele está em todo o lado. É um prato que reúne, uma linguagem comum… um pouco como o queijo em França ou as massas em Itália. Pergunte a um português qual é o seu prato preferido : nove em cada dez responderão um prato de bacalhau (ok, é um pouco cliché, mas é muitas vezes verdade). E se ousar perguntar “mas não é um pouco repetitivo ?”, prepare-se para um olhar reprovador. Porque não, o bacalhau nunca é o mesmo ! Muda de forma, de sabor, de textura, adapta-se à estação, à ocasião e até ao humor.
E é preciso dizê-lo : poucos países conseguiram transformar um simples peixe salgado num símbolo nacional.
Um tesouro de simplicidade
O segredo do bacalhau é que ele não engana. Não se esconde atrás de molhos complicados nem de técnicas extravagantes. Não. É um prato de essência camponesa, de simplicidade refinada. O seu aliado fiel ? O azeite. O verdadeiro, aquele do lagar, verde e perfumado. Junte-lhe alho, cebola, por vezes um pouco de salsa ou uma folha de louro, e o milagre acontece. É a magia portuguesa : sublimar o que é simples sem o desvirtuar.
E depois há esse gesto imutável : deitar um fio de azeite sobre o prato, mesmo antes de servir, como uma bênção. O bacalhau sem azeite é um pouco como o fado sem saudade : impensável ! (vão agradecer-me depois)
O bacalhau na cultura popular
O bacalhau não se come apenas, também se conta. Está nas canções, nas expressões, nos provérbios. Diz-se, por exemplo : “Quem não tem bacalhau, come sardinha.” Ou seja : faz-se com o que se tem (mas bom, se pudermos ter bacalhau, é melhor !)
É também o herói discreto dos mercados, pendurado em redes nas mercearias, perfumando o ar com um cheiro inconfundível. Alguns estrangeiros torcem o nariz (sim, o cheiro é… forte), mas para os portugueses é antes um perfume de infância.
Alguns conselhos antes de se aventurar !
- Escolha bem o seu bacalhau. Prefira o da Noruega, mais grosso e firme.
- Demolhe com paciência. Mudar a água várias vezes é a chave.
- Nunca poupe no azeite. Ele é para o bacalhau o que o sol é para Lisboa : indispensável (atenção contudo se tiver colesterol)
- Não procure a perfeição, o bacalhau é um prato de coração, não de concurso.
E sobretudo, partilhe-o ! Porque em Portugal, nunca se come bacalhau sozinho, é um prato de família, de reencontros, de risos e de vinho tinto que corre um pouco depressa demais.
Peixe rei ?
Então, o bacalhau é apenas um peixe ? Não. É um rei. Um rei humilde, claro, sem coroa nem trono, mas amado por todos. Ele reina nas mesas, inspira os chefs, une as gerações. Encara o que Portugal tem de mais verdadeiro : generosidade, criatividade, simplicidade. Provar bacalhau é provar o próprio país. É compreender, numa só garfada, porque é que os portugueses falam da cozinha como de uma emoção.
E acredite, uma vez que provar um verdadeiro bacalhau à Brás ou um bacalhau com natas a sair do forno, dourado e a borbulhar… vai perceber, também, que aqui, o rei do mar conquistou os corações (incluído o meu) !
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